sexta-feira, 29 de novembro de 2013

O SEGUNDO BEIJO

Nada era tão esperado como a repetição daquele momento. O suor das mãos já a tomava completamente, não só as mãos. Estalava os dedos por pura distração, enquanto fingia não perceber os olhares de quem a beijou, mas era certo quanto a maneira como ela olhava que a atenção era o que mais buscava. Um cigarro dançava por entre os dedos dele:
- Isso lhe dá prazer?
E quase que no mesmo instante percebeu o tamanho da infantilidade de sua pergunta. Como, se o real desejo era somente repetir aquele que parecia como beijar estrelas, ela se preocupava com os pulmões do rapaz?
-Talvez todo o fôlego venha de lá... –pensou.
Apenas um pouco desconcertado e, ter sido pego de surpresa com tal pergunta tão conservadora, o rapaz atirou o cigarro ao chão. Pisou e, mais uma vez pisou. Não parecia ter importância ou até mesmo prazer no ato de tragar aquela coisinha, as migalhas no chão eram nada para a surpresa da garota. Seu questionamento foi, de alguma forma, válido:
- Se não quer, não fumo.
Completamente sem expressão de qualquer sentimento, aquela resposta a atingiu de maneira estranha e em curtos espaços de tempo ela oscilava entre se sentir importante e desprezada, porém o que realmente preocupava era o movimento que os lábios dele faziam em sua frente ao pronunciar cada palavra fria. Não via e não imaginava como seria repetir aquela impressão de beijo. Havia beijado alguns rapazes ao decorrer da vida, mas há pouco, enfim, dera seu primeiro beijo.
Não pediria outro de forma alguma, não gostaria de parecer encantada. Todos os minutos que se esvaiam eram ocupados tentando encontrar um assunto para preencher o momento silencioso e gelado. Nada era dito. Olhos se encontravam e desencontravam, apenas. Os dela procuravam a boca dele, contornavam todos os traços e decoravam todos os tons e trejeitos. Os dele...
- Me fale de seus gostos...
- Você...
Foi uma surpresa. Para ela foi. Para ele foi.
Nada mais disseram e partiram na volúpia mental da consistência que aquele momento tinha. Sem o toque das mãos, sem o corpo, mas com a alma se atiraram ao mais precioso instante de toda sua vida até ali. Aquele era o segundo beijo e aquela situação não se repetiria até encontrarem uma nova sensação descritiva para o que pudesse vir depois.
Não houve novidade. Não existiu um terceiro.

INQUILINO PERMANENTE

“Afterhours” by Harry McNally 
Toda casa tem seu rato. Toda casa pelo menos um dia já teve um rato. Não digo os apartamentos. Está certo que devemos sempre desconfiar das tubulações e sistemas de encanamento, mas se tratando de uma certeza, toda casa tem seu rato.
O barulho das patas correndo rapidamente ou andando sorrateiras pode confundir qualquer um no início. Eu me confundi. Por vezes cheguei a acreditar que eram baratas. Baratas fazem barulho também. Baratas são velhas conhecidas inquilinas, não nos incomodam do jeito que podemos dizer que sim. Mas um rato incomoda, muito. Um dia nos conhecemos, digo, muitos meses depois nos conhecemos. Tentei enfrentá-lo, capturá-lo, não deu. Ele voltava todas as noites, passeava pelo meu telhado, rondava minha cama, não estragava nada e antes que eu pudesse ficar frente a frente com ele outra vez o maldito já estava longe.
Acostumei-me com aquela presença. Em algumas noites de tempo quente ele não aparecia e, confesso, chegava a sentir a falta dele. A sensação de pânico ao levantar para ir ao banheiro me fazia sentir tanta adrenalina que acabei gostando da situação. Não havia uma pessoa que ficasse tranquila ao saber daquela criatura, o desejo de extermínio, em determinado momento, tomou conta de todos em minha casa e eu estava prestes a pedir para que não matassem o rato e então ele apareceu...
Era bom vê-lo, sua cara expressava toda a natureza de um ser asqueroso, nojento, malandro e sem caráter. Encantei-me e de repente... o rato era meu. Não convivíamos, apenas o deixei ficar. Sua estadia me agradava, poucas vezes o via e penso que ele pouco fazia questão de se mostrar frequentemente. Sabia o momento certo de aparecer, causava confusão, via tudo para os ares e depois sumia. Minha família odiava o rato, eu não. Queria domesticá-lo, qual era o problema? E outra, ele sabia que eu já o pertencia então por que não tê-lo para mim também? Mas essa era uma ideia maluca, talvez eu estivesse ficando maluca mesmo.
Ganhei um hamster, não quis. Ofereceram-me um rato de laboratório, uma graça! Não quis. Outros tipos de roedores apareceram também. Não quis nenhum.
Comecei a alimentar meu animal. Eu não o via, mas sabia vinha comer o que eu punha para ele. Criamos assim uma relação de dependência: eu dependia daquela emoção de conviver com um bicho avulso a toda a normalidade de animais de estimação e ele dependia de mim para alimentá-lo e admirá-lo quando ninguém o faria.
Não sei o que eu fiz... Um dia ele partiu. Passaram-se dias, meses, anos e eu nunca mais o senti ali. Não comia mais, não fazia barulho, não aparecia esporadicamente... Apenas partiu. Fiquei arrasada, mas logo passou porque cai em mim sobre a estranheza daquela situação. O rato não me fazia mais falta.
Uma noite dessas penso eu ter ouvido alguma coisa correndo pelo meu quarto. Fiz o teste da comida, a comida sumiu. Depois mais alguns dias passaram e nada aconteceu. Outra vez ouvi as patas patinarem no assoalho do meu quarto... Estranhei. Nada mais fiz, deixei como estava e isso parece que começou a tomar a proporção que tinha antigamente. Continuo agindo naturalmente, mas sei que ele voltou.

FORMIGAS

Gosto daquele chiado da TV
aquele amontoado de formigas
que famintas correm sei lá por quê
Eu fico mudo à chiação,
à correria
e incansáveis, se amontoando,
vão poluindo o meu visor.
Nesta hora o chinelo me falta
Por isso gosto daquele chiado,
só do chiado.

COBERTOR

Um corpo descoberto
Numa cama descoberta
E um peito descoberto
Uma terra descoberta
A criança descoberta
Outra doença descoberta
Um homem descoberto
Num sistema encoberto
Um bêbado descoberto
E uma garrafa meio aberta
No fim do corredor
Uma porta entreaberta

domingo, 3 de novembro de 2013

T-EU

Teu nada
cheira mar
e eu sinto no peito
é forte
é vento,
a paz em observar
acalmado pela tarde
ou feroz na chuva forte.
Teu gosto
Eu gosto,
eu sinto amargo,
quero amargo
e sempre aguardo.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

CANTIGA DE AMOR

Oh minha Senhor, quando te vejo passar
Que passes na rua, na lua ou no mar
Arranca de mim um suspiro de amor

Minha Senhor que todo dia vejo
Passe e leva contigo todo esse desejo
Arranca de mim um suspiro de amor

Os meus olhos são rua, são ondas do mar
Ponho-os em tua disposição para velejar
Arranca de mim um suspiro de amor

Oh minha Senhor, tu és meu lampejo
Por toda minha vida com meus olhos te cortejo
Arranca de mim um suspiro de amor

SONETO DO SANTO TEMPO

Se por minha sorte um martírio não fosse
e se por pensar, não pensasse que  viria
a padecer diante a cruz do mel mais doce
sofrendo as dores de ser sua santa Maria;

Não praguejava os nomes de quem te trouxe,
nem ia em sua busca numa eterna romaria.
Revirar a vala do que nunca preocupou-se
traria a tona a dor impiedosa da minha agonia

E em meio a toda a incerteza angustiante
apareceu para conjurar aquele momento
e por a coisa toda de volta em trilho;

Um santo homem que alegrou por meio instante
quem não gracejava-se a tanto tempo
(o que não durou o ensejo de um trocadilho)

PRIMAVERAS

Rueiro eu
despido e sem morada
um belo dia sou todo seu,
aposentei a minha espada

essa vida tão aguada,
esse leito espinhado...
-já cansei da madrugada-
no escuro é complicado

-mas o escuro é requintado,
até posso me virar-
lembrava sempre assegurado
de muitas birras pra lutar

e lutar e ser vencido
[nunca antes, porém agora]
estapeado, maltrapilho,
-se acostumar sempre demora-

e na demora erguendo choupana ,
ardendo as brasas pra se aquecer,
vendendo as planeias pra se manter,
se manter as custas do que se ama

vendeu até se apagar a chama
e seu orgulho não valer um vintém,
vendeu os livros, comprou uma cama
e lá dormia com seu ninguém

então pensava -é o que se tem-
as vezes via que nada tinha,
outras vezes queria plantar sua vinha
[sementes custam caro também]

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

COTIDIANO

Nada, é o que é.
Apenas a fadiga
de não ser o que se é.
Palpitação.
Escoriação.
A peste.
O câncer.
A falta da coragem
pra se ser o que era antes.
Esperança.
Agonia.
Dobrou a esquina,
bateu de cara,
perdeu a linha.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

PAPEL

Sou o tronco haurido em pecado
e a dor do mato morto
padecido na metalinguagem da arte
e que pela arte não mais retornará.
Despido das cascas,
da história,
dos anos
e dos corações
esculpidos por namorados
tão ontem e ontem ainda.
Lavado e limpo
e já não sou mais eu
e sim a matéria prima do prazer
do poeta amador,
dos trovadores da cidade,
dos mendigos aculturados
e das moçoilas apaixonadas.
Sou livro,
sou bula,
informo,
consumo,
coajo...
Eu sou para errar.
Seu medo de matar e sua vontade de sumir,
o seu pranto sofrido e as águas da saudade,
a alegria nos olhos que escorre pelo rosto
e enfim se finda. Sou fonte.
Não me encerro
e mesmo sendo eu
árvore arrancada
em outrora sou outra vida,
sou folha reciclada.